Não quero mais ser eu: Clarice Lispector e a terceira perna
A questão entre conforto e crescimento
“Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.” - Clarice Lispector em A Paixão segundo G.H
O conceito da terceira perna que Clarice apresenta nesse livro seria algo inerente ao ser humano que apesar de nos manter estáveis, nos prende em um lugar ao impossibilitar nossa caminhada. Desde que li esse livro pela primeira vez (e olhe que já faz um bom tempo), me peguei pensando sobre a minha terceira perna. Nunca soube dizer o que ela seria, pois sempre me vi como uma pessoa muito livre mas ao mesmo tempo eu sabia que algo me prendia. Foi quando há pouco tempo percebi: e se essa terceira perna fosse eu?
Eu, com todas as minhas particularidades tive a coragem de me ver como meu próprio empecilho, algo que parece de fato exagerado, afinal, deve haver alguma parte que preste em mim. Mas, quando parei pra analisar, percebi que talvez, a vida que eu aspirava não fosse compatível com quem eu sou no momento. Anseio desesperadamente por novas conexões, mas não consigo me abrir pra as pessoas. Quero ser ouvida mas não consigo falar. Tudo o que me acontece me acontece de forma passiva, como se eu fosse uma espectadora que não consegue ser quem precisa ser porque não consegue deixar de ser quem é. Não consigo tomar minhas rédeas porque sou covarde e tenho medo do desconforto, quero sair ilesa da vida. É como se eu fosse, de fato, a minha terceira perna, que encontra conforto em ser quem eu sou, mas também me impede de correr pra onde preciso. Nessa instância, é sem dúvida um exagero dizer que não quero mais ser eu, mas, também não quero continuar vivendo a vida de forma tão apática. Claro que até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, pois nunca se sabe qual deles sustenta o edifício inteiro1, mas e quando precisamos nos desfazer de algo tão intrínseco a nos mesmos como isso?

“Já tentara se pôr a par do mundo e tornara-se apenas engraçado: uma das pernas sempre curta demais (O paradoxo é que deveria aceitar essa condição de manca, porque também isto fazia parte da sua condição.)(Só quando queria andar certo com o mundo é que se estraçalhava e se espantava). - Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou Livro dos prazeres.
A verdade é que não consigo tão abruptamente me desfazer de mim, pois abdicar da terceira perna exige muita coisa, mas um dia, essa versão de mim que parece um cavalo selvagem incontrolável vai ser apenas lembrança. Várias versões de mim ainda morrerão e nascerão novamente até que eu atinja meus objetivos e algumas delas terão que ser sacrificadas. A condição não se cura, mas o medo da condição é curável2, e terei que me desfazer da minha terceira perna aos poucos como se estivesse aprendendo a andar outra vez e depois de novo e de novo se for preciso. Quebrando e reconstruindo para sempre. É impossível sair ileso da vida, mas ainda sim buscamos de todas as maneiras por conforto. Temos uma mania infantil de querer tudo sem precisar dar nada em troca e as vezes nos mesmos somos o sacrifício que as nossas vontades exigem. A disciplina necessária parar atingir desejos e realizações envolve sempre a morte momentânea do ser. Por um momento precisarei esquecer que estou desconfortável, por um momento precisarei esquecer que tenho medo de me machucar e assim, em outro momento, eu de fato não terei mais. É difícil se pôr a par do mundo quando se tem sempre uma perna mais curta, ou até mesmo uma terceira perna, mas o medo da condição precisa ser superado para que o mesmo não vire um limite. E nunca será uma hora boa pra começar, mas começaremos assim mesmo.
Referência a frase proferida por Clarice em uma das cartas enviadas a Tania Kaufmann
Outra referência a Uma aprendizagem ou Livro dos prazeres
quando li a metáfora que clarice faz com a “terceira perna” senti como se minha cabeça explodisse… clarice é boa demais
me identifiquei tanto! bizarro como em algum lugar do mundo tem alguém se sentindo da mesma forma que a gente. adorei o seu texto